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Quadrilha, de volta às origens após reinar em nobres salões brasileiros

Leonor Costa
Na edição de abril do JFD o tema desta coluna foi a dança minueto, dança símbolo do poder real, cheia de mesuras e rituais tornando-a mais um cerimonial a ser seguido como demonstração de posição social e cultura. Aos poucos, uma outra dança, comparativamente mais "animada" e lúdica foi tomando os salões nobres da Europa - a quadrilha francesa.

Diga-se de passagem que originalmente a dança não surgiu entre os franceses, mas nos campos ingleses, vinda de danças populares pagãs. Acredita-se que os ingleses tenham levado a "country dance" (country pode significar "da nação" ou "do campo") para a França durante o tempo em que detinham feudos neste país até o século 13. Com o tempo, a dança se espalhou por toda a França e chegou aos salões da nobreza onde, assim como aconteceu com o minueto, foi normatizada e sofisticada, transformando-se na "quadrilha francesa", assim denominada por requisitar no mínimo quatro casais para ser dançada. A quadrilha e demais contradanças francesas e inglesas tiveram seu apogeu nos salões nobres do século 19.

Manual inglês de dança, de 1698, contendo instruções sobre música (para violinos) e
movimentos (direções) para as "country dances" (danças nacionais ou danças campestres,
dependendo da tradução que se queira dar à palavra "country").
A capa ilustra um baile popular com os 4 casais posicionados para a dança,
enquanto os demais aguardam a vez, de forma segregada.
A colocação de um "cupido" formando o trio de violinos, nos dá ideia da importância
da dança para a aproximação dos pares e futuros compromissos matrimoniais.
Biblioteca do Congresso Americano.
No Brasil, a quadrilha francesa chegou com a corte portuguesa e seus professores de etiqueta e dança. Na época do Brasil Império, as quadrilhas francesas faziam sucesso nos bailes aristocráticos, animados por orquestras regidas por maestros franceses especializados no ritmo, como Milliet, chefe da orquestra de bailes da corte, que compôs várias quadrilhas para animar os salões.

No início, os movimentos da quadrilha eram formais, os pares mal se tocavam, e ainda guardava, em suas mesuras e cumprimentos, uma semelhança com o minueto. Havia um encadeamento de contradanças autônomas, geralmente no total de 5, chamadas de "figuras", como se pode constatar assistindo a vídeos no YouTube.

Assista ao vídeo de uma quadrilha francesa dançada seguindo as formalidades do século 18, aqui:



Aos poucos, vários elementos de outras danças europeias foram sendo incorporados e sua coreografia foi se tornando mais elaborada e cheia de figuras, de tal forma que era necessário um casal líder conduzindo os demais, ou um marcador que comandava a sequência, função comumente exercida pelo anfitrião do baile ou por um mestre de cerimônia.

Fora dos palacetes, a população imitava a elite e desenvolvia suas próprias figuras da quadrilha. A música também refletia a criatividade de nossos compositores, que misturavam elementos musicias, influências dos conjuntos de choro e outras fontes de inspiração, como o lundum e o maxixe, criando uma cadência mais ritmada e alegre, a ponto de música e dança serem por vezes referidas, no Segundo Reinado, como "quadrilhas brasileiras".

A quadrilha integrou as danças sociais da aristocracia, convivendo com a valsa e outras danças de época, até as primeiras décadas do século 20, quando a evolução dos costumes e o surgimento do cinematógrafo (pai do cinema) e do fonógrafo (tetravô do iPod) mudaram a produção musical e as formas de se dançar socialmente.
Assista ao vídeo de uma contradança portuguesa que nos faz imaginar como seria uma quadrilha em bailes sociais do século passado:



Em pesquisa realizada em acervos de partituras e registros históricos a etnomusicóloga Rosa Maria Zamith* assinalou que partituras de quadrilha se encontravam em catálogo até 1915, mas observou que na inauguração do Hotel Central, no Flamengo, em 1916, a dança já não constava mais na programação da orquestra, que executou valsas, one-steps, tangos, ragtimes, polcas e, finalizando, o galop.

Embora tenha perdido seu lugar nos salões de bailes, a quadrilha continuou popular em eventos como batizados e casamentos, mas já partindo em direção às classes menos abonadas, de onde surgira. Em um filme da década de 1950, sobre a vida de Zequinha de Abreu (1880-1935), compositor famoso pela música "Tico-tico no fubá", vemos uma "quadrilha brasileira" sendo executada na festa de casamento do músico, no início do século 20 - não como dança folclórica, mas como dança social, já incorporada de vários movimentos adquiridos com o passar dos anos, como o valsado, que não existia em seus primórdios, quando os pares mal se podiam tocar.

Assista ao filme Tico-tico no Fubá no YouTube e repare nas danças e músicas do início do século 19, dentre as quais a quadrilha. No vídeo a seguir, a quadrilha é dançada as 7m30s


Conclui Rosa Maria Zamith: "No avançar do século 20, as danças oitocentistas, por tanto tempo apreciadas, desaparecem paulatinamente dos salões da cidade, mas algumas não são esquecidas pela sociedade e se tornam tradicionais. Foi o que aconteceu com a quadrilha, que se transformou e migrou para o ciclo junino".
  • Acesse AQUI todos os nossos posts sobre quadrilha
  • Acesse AQUI nossos posts com o marcador "um pouco de história": 
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*Textos escolhidos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro, v. 4, n.1, 2007

**Leonor Costa é editora do JFD, foi curadora da exposição "200 anos de ensino de dança de salão no Brasil" (C. A. Calouste Gulbenkian, 2011) e pesquisadora da exposição "Rio Dança – os passos da dança carioca" (CCoRJ, 2012). Texto originalmente publicado na edição 81 (junho/2014) do Jornal Falando de Dança, que pode ser lida on line, AQUI

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